domingo, 4 de setembro de 2011

SOBRE GUERRA E CINEMA - LEITURAS COMPLEMENTARES

 Li esse texto e achei bem interessante. Do grande professor Francisco Teixeira.


Guerras e cinema: um encontro no tempo presente

Francisco Carlos Teixeira Da Silva

Doutor em História Social, UFF/Universidade Livre de Berlim, Professor Titular de História Moderna e Contemporânea, UFRJ e Colaborador Emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército Brasileiro; Professor-Visitante do Centro de Estudos Políticos e Estratégicos da Marinha de Guerra,  Ministério da Defesa.

Guerra e Paz no Cinema


Após a I Guerra Mundial (1914-1918), como era de se esperar, o cinema conheceu uma notável explosão de temas voltados para a guerra, construindo boa parte da memória coletiva do Ocidente sobre o evento. Alguns eram filmes de construção de memória da Grande Guerra, de seus aspectos mais cruéis e heróicos, particularmente no campo dos aliados ocidentais que haviam lutado contra os impérios centrais. Entretanto, os mais importantes filmes do período surgiram como uma crítica dura, quase existencial, à guerra. Correspondendo bastante bem ao grande surto pacifista que sucedeu à guerra e à paz imperfeita de 1919, poderíamos destacar Nada de Novo no Front, dirigido por Lewis Milestone, em 1930 (baseado na novela homônima antiguerra de Erich Maria Remarque) e a Grande Illusion, de Jean Renoir, de 1937. Em ambos os casos, estava evidente a campanha antiguerra dos cristãos, dos socialistas e dos liberais progressistas, expressa, por exemplo, no Pacto Briand-Kellog, de 1928, de banimento da guerra. Em ambos os filmes, histórias pessoais e questionamentos sobre o próprio destino entrelaçam-se com os fatos de guerra, inexoráveis, que arrastavam a existência humana e possuíam como pano de fundo uma recusa social generalizada à guerra. Mas, mesmo num ambiente pacifista, como os anos 20 e 30, surgiram grandes filmes de elogio à guerra, cabendo à França – no apogeu de seu império e poderio, após a derrota da Alemanha na Grande Guerra – produzir sua epopéia histórica, transformando o passado em um episódio glorioso e o homem providencial num herói solitário, tocado pela genialidade e o divino, ou o sobrenatural, como é o personagem central, errático e errante, de  Napoléon, de Abel Gance, de 1927. A Alemanha também produzirá sua versão mística, e mítica, da Guerra de 1914-1918, através da reconstrução de um passado glorioso e da consciência de ser a fonte da justiça num mundo povoado por injustos e traidores, como em Die Nibelungen: Siegfried Tod (A Morte de Siegfried, em 1924), de Fritz Lang, com roteiro de Thea Von Harbour, mostrará um herói justo, puro e imaculado sendo traído em sua confiança e credulidade, única forma de derrotá-lo. Siegfried fornece, mesmo que esta não tenha sido a intenção inicial, uma visão plástica, calcada nos mitos germânicos da terra, do san- gue e da floresta, das  esdrúxulas justificativas do Estado-Maior alemão para a derrota frente aos aliados (a versão da Punhalada pelas Costas ou Dolchstoss, embutida na lenda germânica da invulnerabilidade do corpo de Siegfried, com
uma única exceção, que é delatada aos seus inimigos). Em ambos os filmes – marcados por grandes experimentos fotográficos e soluções visuais de enorme alcance – a guerra é sublinhada por um certo encantamento, envolvida em brumas míticas, e vista como um experimento que tempera na dor e na privação o caráter de um povo. Não se trata de um elogio óbvio. Ao contrário, a guerra é dura e cruel, porém necessária e capaz de corrigir injustiças e, com muita certeza, está escrita no destino dos povos.
Da mesma forma, ambos os filmes não se remetem à Grande Guerra – há apenas uns poucos anos atrás – mas buscam, em conflitos muito mais antigos, uma metalinguagem que evite a obviedade e permita que o público realize associações e busque as próprias conclusões, embora aprisionado em um universo imagético único, balizado pelos temas do sacrifício, do heroísmo e da traição. A Revolução Bolchevique de 1917 trará um ingrediente novo para o cinema: de um lado, a elite soviética se interessa por ele, por seu imenso potencial pedagógico, em particular num país tão vasto e com uma grande população de analfabetos, como era o caso da jovem URSS. Neste sentido, surgiram filmes como O Encouraçado Potemkim (Bronenosez Potemkim ), de Sergei Eisenstein, de 1925; ou, em 1927,  Outubro, que se propõe a ser uma verdadeira aula de história soviética, usando abundantemente de recursos como a tipagem (onde burgueses são mostrados com caras de lobos). Por outro lado, a cada vez mais tensa paz armada na Europa, com a ameaça geral de guerra, acaba incentivando o renascimento de um sentimento patriótico “soviético”, como é o caso de Alexander Nevsky, do mesmo Eisenstein, de 1938. Neste caso, o cinema deveria inculcar um sentimento nacional, agora soviético, a uma população que, durante os últimos dez anos, fora educada contra o “nacionalismo burguês”. Tanto em Alexander Nevsky quanto em Ivan, Eisenstein introduz o mesmo caráter místico, quase religioso, já existente nos filmes citados de Gance e de Lang. A guerra é, por excelência, uma experiência mística e sacral Sem dúvida, foram os russos os primeiros a utilizar, em grande escala, o cinema como uma arma de propaganda, tanto em política interna quanto externa, cabendo ao Estado o planejamento e o financiamento de uma programação adequada aos interesses do Partido Comunista. Do outro lado do mundo, e no extremo do sistema político e social, os Estados Unidos não se mostravam muito diferentes no processo de colocar a indústria cinematográfica a serviço dos interesses do Estado. Em Hollywood, o grande cineasta Frank Capra dirige, para a Marinha de Guerra, um conjunto de filmes de cunho patriótico, nitidamente voltados contra o Japão, sob o título Por que lutamos? (Why we Fight?, 1942-1945).
A Alemanha hitlerista dedicará um grande esforço à produção fílmica de caráter nacionalista, ultrapatriótica e racista. Ao lado de uma imensa série de filmes antijudaicos, em sua totalidade grosseiros e desdenhados até pela elite nazista – tais  como Jude Süss, de Veit Harlan, e Der Ewige Junde, de F. Hippler, ambos de 1940, o III Reich financiou um bom número de produções mais sofisticadas e, malgrado seu odioso conteúdo racista, com  soluções formais magníficas e inovadoras, tais como O Triunfo da Vontade (Triumph dês Willens), dirigido por Leni Riefenstahl, de 1935, repetidas no conjunto de seus trabalhos encomendados pelo Führer, com grande inventividade técnica. Neste caso, com Riefenstahl, o grande impulso tecnológico alemão no período de entreguerras (1919-1939), bem como o generoso financiamento do Estado, permitirão o surgimento de especialistas, técnicos em iluminação e montagem, com soluções formais e inovações de linguagem, além dos fantásticos estúdios em Babelsberg, perto de Berlim, que acabarão por tornar tais obras um momento permanente da história do cinema. Alguns destes trabalhos assumiram claramente um papel de herança ideológica do III Reich, como Kolberg, filmado em 1944, com um superorçamento e desviando soldados da frente oriental para servirem como extras, e cuja estréia será feita em uma Berlim em ruínas. Kolberg deveria marcar, através da metáfora histórica da resistência, o renascimento futuro da Alemanha.

No Vietnã: em busca de uma explicação

A segunda Guerra do Vietnã (1965-1975), bem mais do que a da Coréia (1951-1953), será outra fonte inesgotável de filmes bélicos nos anos 70 e 80. No início, são filmes patrióticos, onde a Guerra Fria explica e justifica o interesse dos Estados Unidos em um pobre e remoto país do sudeste asiático, transpondo para as telas uma versão simplificada da chamada teoria dos dominós. Assim, uma das primeiras obras sobre a guerra é o patriótico filme Boinas Verdes (Green Berets), de 1968, dirigido por John Wayne, ator notável e notória figura da direita republicana americana. Tratava-se de explicar ao grande público as razões pelas quais a América lutava no Vietnã, através de uma visão maniqueísta do mundo dividido entre o bem e o mal, típica da Guerra Fria. Entretanto, quanto mais se aprofunda a divisão da América e mais e mais surgem, face ao público, as marcas da guerra, como o Massacre de My Lai, mais difícil fica manter uma aparência de Guerra Justa à intervenção americana. Muitos filmes serão produzidos, neste momento, tendo como pano de fundo a guerra, a rebeldia contra o chamado sistema e a recusa aos ideais do american way of life. Apenas alguns anos após a queda de Saigon, em 1975, uma enxurrada de filmes irá revisitar o conflito, trazendo a público uma das mais nobres tradições da América: a autocrítica. O cinema americano, inclusive Hollywood, muitas vezes será mais cruel com o comportamento das tropas americanas no Vietnã que muitos de seus mais duros críticos estrangeiros. Assim, já o documentário Corações e Mentes, de 1974, dirigido por Peter Davies, dissecará o conflito de forma minuciosa, com lentes de aumento e total dedicação, tornando um filme americano a maior fonte de crítica disponível no ocidente contra a ação da América na guerra. Aos poucos a ficção, com perfil histórico, dominará a cena. Primeiro, em 1978, será a vez de O Franco-Atirador (The Deer Hunter), uma comovente saga de imigrantes que aceitam e amam a América e que fragmentam seu caráter humano no Vietnã.
Logo em seguida, em 1979, um épico dramático mostrará a guerra banalizada, privatizada e sem sentido, travada pela América nas selvas do rio Mekong: é o estrondoso sucesso de Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, um filme corajoso, construído a partir de um texto denso e reflexivo de Joseph Conrad (No Coração das Trevas), sobre a solidão e a radical alteridade do indivíduo. Exibido no momento em que a América, expulsa do Irã, sofria a humilhação de seus reféns em Teerã, Apocalipse Now será parte fundamental do afresco produzido em busca de uma explicação do que lhe acontecera no Vietnã. Os temas centrais presentes serão, conscientemente ou não, sempre repetidos: a profunda incomunicabilidade cultural dos EEUU, sua profunda incapacidade para entender o outro, a razão mais clara para o desastre da América junto a povos antigos, desejosos de manter a própria identidade. Os anos 80 continuarão como a década do Vietnã: Platoon, de Oliver Stone, em 1986; Nascido Para Matar (Full Metal Jacket), de Stanley Kubric, de 1987, e Pecados de Guerra (Casualties of War), de Brian DePalma, de 1989 serão alguns dos filmes excepcionais que procurarão rever a guerra de um ponto de vista novo, que, ao reconhecer, de saída, a incapacidade da América de entender o outro e suas razões, reflui silenciosamente para o diálogo autista. Assim, malgrado a paisagem tropical, as plantações de arroz e as aldeias vietnamitas presentes, as relações entre os personagens principais, dominantemente americanos, são centradas em temas da América urbana e industrial moderna. O Brooklin instala-se em Saigon. São dramas individuais, há uma notável ausência de mando ou hierarquia; a selva e os imensos espaços abertos permitem fazer florescer em cada um o verdadeiro ser humano que reside em cada coração e mente, ora gerando valentes, ora gerando pervertidos, abrindo espaço para que o conflito entre indivíduos surja  em toda a  plenitude. Os heróis em Platoon ou em Pecados de Guerra estão sempre perante a imperiosidade de fazer escolhas e, então, arcar com suas conseqüências. O conflito cósmico e superior da guerra é reduzido a uma dimensão individual, como se ela residisse permanentemente no interior de cada indivíduo, fazendo do embate (o real, existente no exterior objetivo) apenas uma pano de fundo para uma outra guerra, permanente, e da qual não se poderia jamais fugir (posto ser individual, subjetiva e interiorizada).  Estaria aí, sem nenhum apelo ao humanismo pacifista ou ao nacionalismo belicoso, a essência da guerra, vista pelo cinema americano: a possibilidade real de cada um ser o melhor e o pior de si mesmo. A guerra é, assim, reduzida à  permanente incerteza do indivíduo, impulsionado incessantemente para a exigente necessidade de vencer a si mesmo. Mais uma vez, a representação dos grandes conflitos humanos e dos fenômenos sociais complexos é apresentada como  um duelo entre duas vontades férreas.
A profunda divisão causada na sociedade americana ao tempo da Guerra do Vietnã, com a recusa de tudo que pudesse lembrar a rotina do american way of life, acaba por causar um trauma coletivo de grande profundidade. Somar-se-iam à imagem de uma guerra, feita pelos que têm “mais de trinta anos”, formas divergentes e novas de contestação da ordem estabelecida. Da admiração ao zen-budismo até as idéias de Herbert Marcuse, em especial suas associações diretas entre capitalismo e o instinto de morte, os jovens, em meados dos anos 60, opuseram-se fortemente à guerra, como na peça e no filme homônimo Hair. Pôr “o pé na estrada” – a rebeldia on the roads – parecia ampliar as recusas da geração beatnik, de uma década anterior. Recusava-se ao mesmo tempo o “sistema” (palavra-chave, senha mágica que identificava todos os que se consideravam rebeldes), entendido aí para além do capitalismo, como todo um modo de viver burguês e bem comportado, tão arduamente conquistado pela geração do babies-boom do pós-II Guerra Mundial, e se identificava a guerra como expressão máxima do sistema. Make love, not war tornava-se, assim, o lema de toda uma geração. Desta forma, as grandes manifestações de massa contra a guerra e pelos direitos civis e os grandes espetáculos de música, como Woodstock, eram a expressão máxima do protesto juvenil. Pais atônitos, que haviam trabalhado duro no interior do sistema, viam agora  os  filhos colocar o pé na estrada, dando as costas para o american way. Sexo, drogas & rock ‘n roll marcavam um novo padrão de comportamento. Dois grandes marcos do cinema de horror, o chamado novo terror americano, surgem nesta mesma época: The Exorcist (William Friedkin, 1973) e Carrie (Carrie, a estranha, Brian de Palma, 1976). A temática é comum e traduz largamente o espanto de pais e educadores. São histórias de teen-agers de comportamento estranho, como se estivessem possuídos por forças malignas. Os dois megassucessos, responsáveis pelas novelas originais, William Peter Blatty e Stephen King, propõem claramente que o comportamento rebelde e psicodélico dos jovens, para além da compreensão dos mais velhos, em especial o comportamento “sujo” dos garotos (o que quer dizer sexualizado) não decorre de qualquer crise social e, sim, de forças estranhas. Cultos misteriosos, rituais satânicos, símbolos obscuros surgem na cultura popular urbana – suas novas lendas – como referências elucidativas do estranhamento social. Duas balizas enquadram o novo medo coletivo da América (e, por extensão, do ocidente urbano e industrializado): de um lado, Woodstock e, de outro, a Guerra do Vietnã. As cenas coloridas trazidas à TV nos noticiários falam de morte, tortura e dor; tratava-se de uma tragédia de pornô-violência, pontuada por drogas, sexo brutal e morte. A iniciação do campesinato vietnamita à democracia ocidental escandalizava a América (e o mundo), que, por sua vez, se recusava a crer que seus garotos pudessem ser os autores de massacres como o de My Lai. O cinema, como um elo entre o real e o irreal, através de meios mágicos, procura exorcizar as forças estranhas que se haviam apossado dos garotos americanos. Assim, alguns filmes funcionam como verdadeiros mecanismos de retroalimentação do mal-estar social, oferecendo símbolos de fixação do medo e formas de sua exorcização. O Exorcista veicula um forte sentimento de documentário, um sinal vermelho imenso gritando: “(...) e o seu garoto, onde está agora? O que está fazendo?” São, em princípio, famílias reais e concretas dos anos 60 e 70, marcadas pela busca do sucesso e do bem-estar material, além disto, com pais ausentes, mães que trabalham fora de casa e se preocupam em ter uma vida social autônoma. É então que surgem ruídos estranhos que, na noite, perturbam toda a sociedade, apontando para a fragmentação da família tradicional e para o estranha- mento social como as causas profundas do horror (real no Vietnã e alegórico nos filmes). O caráter de massa do sucesso do novo horror americano explicita o sentimento de toda uma sociedade que estava na iminência de perder seus filhos. Ainda em 1975, Tobe Hooper dirigia The Texas Chainsow Massacre, um espetáculo explícito de matança de jovens, misturando sexo perverso, com rock pesado e a destruição da noção americana de família. Uma série de filmes, ao longo dos anos 70, e início dos 80, acentuaram a construção de lendas urbanas, onde jovens são massacrados por forças demoníacas, materializadas em figuras sexualmente perversas, como Jason e Freddy Krueger. Em ambos os casos, a destruição da família abre espaço para o comportamento “sujo” dos jovens e ninguém que faça sexo estará a salvo em filme de horror, como na série iniciada por Wes Craven, A Nightmare in Elms Street (USA, 1984). O ponto máximo do sentimento de perda e desesperança, quando o fim da adolescência implica  a assunção da vida adulta, negada pela família burguesa americana, surge no inteiramente explícito Garotos Perdidos (Lost Boys, Joel Schumacher, USA, 1987), quando a identifi- cação do garoto/jovem homem leva à perda vampírica, expressa, de um lado, em sexo e drogas e, de outro, nos atos perversos de morte e sexo nas selvas do Vietnã.

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